Aos três anos,
Clarisse foi violentada, não foi um estupro, mas teve o mesmo valor. A
violência foi prolongada, arrastou-se por muitos anos. E esses anos fizeram com
que ela compreendesse o que acontecia, e a deixaram culpada por ter passado por
tudo o que passou. Foram lágrimas e mais lágrimas derramadas por uma culpa inexistente,
um pecado que ela não havia cometido; mas que o carregaria para o resto da
vida.
Será que ele era
culpado por tudo o que aconteceu? Era uma pergunta constante, que ela respondia
com um “sim” e um “não”, sem chegar ao real objetivo da pergunta. Talvez ele
possuísse uma parcela de culpa, já que ele tinha plena consciência de seus
atos. Mas ela não poderia culpá-lo, acusá-lo, muito menos odiá-lo. Ele era uma luz,
presente em todos os dias da vida dela. Sim, uma luz.
Clarisse pensou – quando ficou mais velha – em beber, usar
algum tipo de droga que a deixasse esquecer tudo, pensou em matar-se. Aliás, a morte
a acompanhava desde a sua concepção, até que chegasse o dia que as duas se
encontrariam. Clarisse e a Morte. Ela morria todos os dias, como todos nós
morremos. Só que com ela era diferente, ela conseguia sentir a Vida junto com a
Morte; duas companheiras inseparáveis, duas ações necessárias. Clarisse
carregou dentro de si um amor pelo mundo, um amor para as pessoas que o
mereciam e nunca o abandonou. Ela não usou drogas, nem teve covardia o bastante
para se destruir.
Clarisse conseguiu ter a maturidade necessária para superar,
uma alma formada para entender e um coração magoado que ela deveria regenerar.
Ela possuía uns olhos castanhos profundos, que ninguém jamais interpretou de
forma correta; olhos aparentemente felizes, mas por dentro, eram olhos
magoados, doloridos por causa das lágrimas carregadas de facas.
Clarisse decidiu voar, e deixou que a chamassem de louca, e
que depois a internassem em um hospital psiquiátrico. Não se importaria, voou
dentro de si. Ela amou seu corpo imperfeito, suas mãos que já haviam passado
por tanto. E seus olhos. Seus olhos que já haviam visto demais, presenciado o
que não deveriam, chorado como ninguém. Ela decidiu que amaria alguém, seja lá
quem fosse, mas amaria. Clarisse amou um homem de olhos castanhos, quase
translúcidos. Ela o amou em segredo, nunca falou sobre, nunca deixou escapar.
Ela queria alguém com que pudesse contar e confiar, lembrou-se de si mesma.
Lembrou que ela, apenas ela conseguia entender a própria dor, os próprios
fatos.
E compreendeu-se. O fato da infância não a acabou, ao
contrário, transformou-a no mais encantador dos seres.
Datas, folhas arrancadas de um calendário qualquer. A mais
idiota contagem dos dias. Olheiras foram provocadas pelo vício de ler, a melhor
droga que já foi encontrada. Unhas afiadas, prontas para uma situação que
necessitasse de uma arma cortante. Uma língua afiada de palavras cortantes; mas
Clarisse era e ainda é a mulher mais doce que conheci. Ela só não se mostrava,
não entregava os pontos, não se deixava levar. Clarisse não me entregou os
pontos. Clarisse não me deixou vasculhar a alma dela, não me permitiu que a
interpretasse de imediato. Queria deixá-la nua em frente ao espelho e dizer-lhe
o quanto era linda. Ela era livre e não corava por qualquer coisa. Sabia que um
elogio era um elogio. E ela não limitava-se com sorrisos, argumentava comigo e
perguntava o por quê de tal elogio. Clarisse nunca foi simples, era a pessoa
mais difícil de se conviver. Ela foi feita para estar só. Sozinha, porém,
desejava os abraços de alguém que ela não conhecia, que ela ainda não havia
encontrado. O alguém era eu, eu sempre soube. E o alguém também era ela. A
Clarisse normal que havia ficado nos espaços entre as estrelas. Ela perdeu a
Clarisse simples, vazia, de problemas normais, patricinha e mimada. Clarisse
era uma mulher aos 15 anos.
Clarisse nunca morrerá, permanecerá dentro dela e dentro de
mim. Clarisse foi minha mulher, minha amiga, meu irmão, meu tio, meu avó. Ela
poderia ser o que quisesse. Clarisse parou de respirar aos 75 anos, ao lado da
nossa filha e dos nossos netos. As crianças mais inteligentes que ela conseguiu
“projetar”. Clarisse ainda está aqui e ainda sou um rapaz idiota que ela fez
homem. Ela ainda está olhando além do mar e ainda continuo querendo entendê-la.
Era um trauma, cheia de cicatrizes e ela sempre falava: “Deixe-me com minhas
cicatrizes, preciso delas.” E ela realmente precisava, ela queria lembrar de tudo
o que já havia acontecido; sem mágoas, só com um sorriso de saudade da menina
que tinha medo do futuro. Ela amava a mulher que havia se tornado. Clarisse
nunca me falou nada, deixou tudo escrito. Disse que eu só deveria ler depois
que ela morresse, caso eu desobedecesse, ela me mataria de qualquer forma,
tenho quase certeza disso. E eu li tudo, assim que ela falou: “Terei que te
deixar.” Mas ela não morreu, eu sei que não; ainda ouço seus passos, ainda amo
o cheiro daqueles livros. Ainda sinto a quente respiração de Clarisse ao pé do
meu ouvido.